Os dias passam, pois existem mesmo pra passar
e as coisas também vão passando, fique sereno,
verá o quão bonito é o passar delas
falou um distinto tigre branco para um passarinho cinza miúdo
a descansar em suas costas, enquanto ele caminhava na mata fechada.
A avezinha desanimada parecia não entender
aliás, já não aguentava mais lidar com o que não entendia
por que felicidades crescentes se desfazem com tristezas tão repentinas?
Tristezas tão repentinas, e que parecem crescer com mais força
que qualquer outra coisa
Por que a tristeza é tão forte?
Fazia algum tempo que o majestoso tigre branco
passara a carregar o serzinho aborrecido
um passarinho cinza miúdo que só sabia pensar agora na raiva que tinha do Sol
o Sol que engoliu uma amiga querida
uma águia de garras douradas e coração áureo
o bicho do voo mais bonito daqueles arredores
Um dia a águia majestosa
voando junto de seu amiguinho
desandou a fazer piruetas no céu, rindo feito criança
o passarinho cinza das asas coloridas não entendia nada
mas achou bonito o espetáculo da sua mestra
entusiasmou-se em aprender aquilo também
você vai sim, meu querido, e vai fazer mais bonito que eu
vai desenhar arco-íris por todo céu em que voar
legal!!! quando você vai me ensinar isso?
Perguntou o aprendiz
Essa é a melhor parte, eu não vou te ensinar
e continuou piruetando alegre a majestade do ar
O que isso queria dizer?
Se perguntou o passarinho todos os dias, a partir daquele
se perguntou muito mesmo, matutou sem parar
mas se fadigou de tanto ficar matutando
achou melhor apenas se contagiar com alegria pueril de sua professora
Num dia não qualquer, contentes as duas aves voavam juntas
rindo sem interrupção
a águia voou mais alto ainda, e seu amigo a acompanhou
Estou extremamente satisfeita, orgulhosa de seu progresso
vê-lo nesta parte tão ampla do céu só me faz sorrir cada vez mais
Você também me faz sorrir mestra, respondeu o passarinho
Meu querido, agora preciso que você fique parado, apenas veja
e quero que continue sorrindo, fique sereno
após isso, a ave nobre elevou seu voo cada vez mais
enquanto seu pupilo observava curioso,
e permaneceu subindo, e subindo mais rumo ao Sol
cada vez mais longe, e mais perto da luz magnífica
o passarinho sem entender,
até que então um clarão forte se fez
e depois desse dia o ser cinzento não viu mais sua amiga
E manter o sorriso se fez dever impossível
A rainha dos ares pediu para que continuasse a sorrir
lembrava todos os dias o sagaz tigre branco a pequena ave
que carregava nas costas frondosas
mas o passarinho nem parecia escutar
o céu já não tinha mais graça
e a mata fechada voltou a ser seu refúgio
lá pelo menos podia ficar ao lado de seu amigo felino
mas sua dor só ficava um pouco menor, não cessava
e a garbosa fera dos olhos brilhantes
sempre repetia ao cinzento passarinho a tarefa deixada pela ave maravilhosa
E os dias passam, pois existem mesmo pra passar
o tigre dizia ao pequenino.
Certa noite, pediu para ele descer de suas costas e ficar ali mesmo
Agradeço pelo brilho que a mim proporcionou
e reforço o pedido de nossa amada ave de rapina
estamos orgulhosos
e nós queremos que também faça da luz seu caminho
mesmo que ela possa lhe assustar
Foi o último enigma difícil
que o tigre falou ao ser pequeno antes de se afastar
sentou-se em frente ao passarinho e de longe o fitou com seus olhos brilhantes
A luz deles se intensificou mais e mais, ofuscou brevemente tudo ao redor
e após cessar, já não havia mais o belo felino sentado onde estava
A tristeza constante fez se um doloroso desespero na avezinha
Clarão maldito!!
E se a melancolia já o desanimava de voar, a falta dos olhos brilhantes do amigo
pareceu estagná-lo definitivamente.
E o passarinho praticamente ficava a rastejar pelo solo, triste e revoltado
O que havia de fazer sem seus grandes companheiros?
Tudo ficou sem qualquer propósito
continuou a se rastejar, deprimido e desorientado
chegou a um lugar mais pantanoso da mata
por lá decidiu se aconchegar
ficando por muitos dias quaisquer
ladeado de toda aquela sujeira.
Hás mesmo de decepcionar dois seres majestosos que tanto o estimaram
aí chafurdado nessa lama?
O minúsculo bicho se espantou...
Quem está aí? Me deixa em paz!
Mas oras, estou o deixando,
mas isso não é paz, e tu o sabes.
Respondeu a sábia coruja assentada em um tronco
fixado perto daquele lodo
O passarinho permaneceu como estava
notavelmente aborrecido
com aquela companhia que surgiu misteriosamente.
Contudo a coruja continuava tranquila, saía as vezes para se alimentar,
mas sempre voltava praquele lugar pantanoso e ficava observando
O lamacento ser intrigou-se com isso,
Por que uma coruja havia de ter interesse por aquela imagem tão horrenda?
Me apraz aguardar pelas partes marcantes de um bom espetáculo,
disse bem calma...
Ainda mais um espetáculo agraciado por dois seres tão soberanos,
seu ápice há de vir com certeza,
continuou a ave sensata.
Talvez tu queiras acompanhar e esperar comigo, vamos...
O bicho cinza não pareceu compartilhar do entusiasmo vigente
porém não deixou de ficar curioso,
levantou-se dificultosamente
e se dispôs a seguir a coruja
A ave erudita sorriu,
vamos sair desse pântano desagradável,
a mata é muito imensa...
E saíram.
O pequenino já não mais voava,
mas ao menos parou de ficar rastejando.
Onde já se viu passarinho que imita réptil?
A companhia da coruja era até bem agradável
apesar de ela dizer tantas coisas difíceis...
mas o pássaro miúdo parecia já ter se acostumado com o que não entendia
só ouvia e deixava passar, não tinha o que fazer
Como você sabe da águia e do tigre?
Ora, criança, todos os animais sabem...
respondeu a ave prudente,
todos sabem do trio de animais diferentes...
O trio que se foi, interrompeu o passarinho triste
Isso já não se faz tão verídico, contestou a coruja prudente,
mas continuemos...
E continuaram.
A paciente coruja voando baixo e devagar
e o pequeno ser lhe acompanhando do solo
o que poderia de tão súbito estar por vir?
Finalmente em um dia não qualquer
que a tanto não surgia
prosseguiam as duas aves em diálogo
até se depararem com um ofegante leão que chegava
Seja bem vindo, tesouro da savana longínqua, por que tanto ofegas?
Indagou a coruja nada surpresa com a presença inusitada
o mesmo já não ocorria com o passarinho
perplexo com a grandiosidade desse outro felino que nunca vira antes na mata
Apressei-me ao máximo para estar aqui antes da partida do tigre
pelo visto atrasei-me, respondeu o destemido leão
Que lástima, não poder ver novamente meu garboso e velho conterrâneo!
Não te aborrece, meu caro, consolou o pássaro sereno, em tom maternal
aproveite e fique conosco por um tempo
estamos a espera de um magnífico espetáculo
Até aquele momento o leão não percebera o mirrado passarinho no solo,
estarrecido com aquela juba colossal.
E o felino surpreendeu-se tal qual seu admirador...
Mas o que houve com suas asas gigantes?
O miúdo animal desconfortou-se com a indagação...
O que houve com suas asas gigantes que afugentaram os caçadores cruéis?
Perguntou a fera peluda, espantada ao ver a condição da avezinha.
Sem o tigre e seus olhos brilhantes e a águia pra me ensinar
minhas asas não servem pra mais nada
justificou o ser cinza em tom irritadiço
Coruja e leão se entreolharam
mas nada disseram
Apenas sorrindo, o felino audacioso aceitou o convite de sua amiga
precisava de repouso antes de voltar
Novos dias se davam,
e estar entre esses dois outros bichos
até animou um pouco mais o passarinho
A sábia coruja em suas justas considerações
o destemido leão viajante, entusiasta das grandes aventuras
Mas era difícil compreender porque tanto falavam desse tal espetáculo
aliás, quando ele começaria?
De repente a pequena ave impacientou-se
Que espetáculo é esse, por que demora tanto a começar?!
Ele perguntou quase furioso
Maravilhados, a coruja e o leão gargalharam
Pior que nós não sabemos,
responderam sorridentes
mas ele há de vir
e risonhos permaneceram, menos o miúdo ser
aborreceu-se um tanto
mas seguiu acompanhando os outros dois
calado, introspectivo
… mesmo assim, melhor do que ficar naquela lama
disse humorado o leão corajoso.
Perto dali, daquela mata fechada,
os caçadores covardes novamente tramavam
acabariam com tudo aquilo,
aquela selva patife que os humilhou travestida de um minúsculo passarinho medíocre
Prepararam todos seus artefatos, todas as suas armas e partiram naquela noite
Começaram com explosões e logo iniciou-se o fogo
cercou a mata por vários lados e chamas se alastravam agressivamente
os bichos começaram a correr desesperados
gritavam e choravam perdidos
O que se passa na cabeça dessa maldosa gente?
E diante dessa desordem infinda,
a coruja e o leão puseram-se a guiar os outros animais pelas trilhas mais seguras
o passarinho abrigou-se na juba vasta do felino
mas acabou caindo nesse tumulto todo
Aflito tentava fugir, mas suas perninhas ainda estavam muito frágeis
tentou alçar voo, mas não adiantou.
Todos os outros bichos conseguiram se afastar da mata
e de onde estavam, assistiam àquele caos abusivo
lamentavam-se e maldiziam aqueles humanos cruéis
Palavras grosseiras não hão de curar a dor de nenhum de nós
bradou a coruja, estamos a salvos, e pensaremos em como reverter isso
mas sejamos prudentes, lidar com essas bestas irracionais requer muita cautela.
Você viu o passarinho? interrompeu o leão, ao notar a ausência da pequena ave,
Não o vi por essa parte, a coruja falou
Deve ter caído de minha juba, devemos buscá-lo depressa
Concordo plenamente. Fiquem todos aqui e nos aguardem!
A ave ordenou aos outros e prosseguiu junto ao felino.
Lá na mata, o passarinho tentava de novo voar,
apenas tropeçava, e o fogo cada vez mais perto,
aquele calor sufocante e terrível lhe agoniavam
tentou então só correr aflito
e o cansaço se fazia mais evidente e inevitável
O que ele podia fazer? e sua vista ficando escura
e o fogo acabou sendo a única claridade ali...
Até que subitamente uma inspiração inquietou-lhe
ficou no solo e começou a bater as asas, caminhando em direção às chamas ferozes
firmemente insistia em seu intuito enquanto se aproximava das labaredas
A coruja e o leão conseguiram chegar ao destruído local e presenciaram
o incêndio engolindo o miúdo passarinho que ia para seu rumo
batendo suas asinhas pra frente e pra trás sem parar
Estarreceram-se com aquilo, tentaram até se aproximar mais um pouco para resgatá-lo.
Afastem-se daqui, gritou uma voz forte como um trovão
e daquele fogo todo saiu voando uma ave colorida de asas imensas e uma cauda gigante
também cheia de matizes, tal qual o mais belo arco-íris
E o pássaro multicolor deu um tantão de rasantes e começou a girar pelo céu
fazendo ventar velozmente
Por favor, meus amigos, fiquem em um lugar seguro
pediu para a coruja e para o leão, que assim o fizeram
Duma certa distância observavam o evento único
Com a ventania potente afastava as labaredas
e depois voou para o mais alto do céu
atraiu para si muitas nuvens
agitou tudo ao redor e fez-se então uma tempestade barulhenta
A água foi apagando as chamas e dando fim a todo aquele fogaréu
Os caçadores, fugiram amedrontados com os trovões e ventos,
quem sabe para nunca mais voltar?
A tormenta enfim cessou, e após chover o céu ficou claro
A ave colorida majestosamente pousou diante da coruja e do leão admirados
Eis o espetáculo que estava por vir!
Exclamou o pássaro sapiente
E digno da apreciação de entes tão magnânimos quanto a águia e o tigre que o acompanharam,
completou.
Compensou muito aguardar, a senhora está sempre certa, o felino aguerrido falou para a amiga.
Nossos mais entusiasmados parabéns, e receba também nossa afeiçoada gratidão,
disse um dos bichos que se aproximava junto toda aquela multidão de animais
Foi reconfortante assisti-lo salvando nossa floresta, grande pássaro colorido,
outro bicho acrescentou
A magnitude daquele espetáculo foi agraciada por todos aqueles seres
todos se sentiram honrados por isso,
e de fato compreenderam o que quatro seres tão magníficos percebiam naquela cinza avezinha,
algo que ele conseguiu também, em fim.
E um tempo não mais qualquer prosseguiu gradualmente
As coisas foram voltando a si
Já era hora do leão destemido voltar a sua savana
tinha seus entes para cuidar
mas se lembraria frequentemente daquilo tudo
mais uma aventura inesquecível pra contar
E a coruja sábia decidiu viajar também
ainda tinha coisas pra conhecer
estava se sentindo empolgada para ver mais espetáculos
Naquele instante os três se despediram afetuosamente
O pássaro multicolor observava seus amigos partirem
mas já aguardava ansioso seu reencontro.
Certo instante, recordou-se do tigre branco dos olhos brilhantes
e da águia soberana das garras douradas
seus primeiros companheiros amados,
com quem passara também muitos dias, tristes e felizes.
Uma saudade forte veio, um desalento incômodo,
pois sabia que aqueles dias vividos não voltariam,
mas aí ele lembrou que novos dias vieram depois
e ele houve de viver muitas outras tristezas e alegrias
junto a coruja e ao leão, e até os outros bichos
e com toda a somatória dos dias, muito aprendeu
Os dias passam, pois existem mesmo pra passar,
e as coisas também vão passando,
e esse passar é que é bonito
Na verdade ele todo é o espetáculo
e do 'passar' se constitui a épica
… neste caso, uma épica fabular.

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